Artigo especial- Curdistão

 

Curdistão. Nunca existiu e, provavelmente, nunca existirá. Não viu a sua identidade política reconhecida e, até há bem pouco tempo, mesmo a identidade cultural lhe era negada. Mas lá que há curdos, há, e foram eles que inventaram a palavra Curdistão. Viagem ao leste da Turquia, ou melhor, ao Curdistão, o país que nunca chegou a nascer.

O PAÍS DO NUNCA

A história dos curdos já tem barbas, mas continua a repetir-se: um povo tribal que passa o tempo em guerras internas, não se organiza como nação e perde todas as oportunidades de fazer frente aos inimigos comuns, ou de criar uma forte e duradoura identidade política. O resultado é acabarem distribuídos por áreas entretanto retalhadas em países pelos mais fortes, divididos, espalhados em diáspora para sempre.

Jovens curdas
Jovens curdas

As maiores comunidades vivem hoje no Norte do Iraque, Noroeste do Irão e no Leste da Turquia. Neste último país, o número parece ultrapassar os onze milhões, transformando a Anatólia Oriental na “pátria curda” por excelência. Só que nenhum destes países tem a mínima intenção de ceder um milímetro, quanto mais um quilómetro, e os curdos continuam a viver como estrangeiros exilados em terras que sempre foram suas.
No Iraque, são conhecidas as atrocidades do regime contra os curdos após a invasão do Kuwait; no Irão, as curdas fazem questão de manter os seus trajes tradicionais ultra-garridos, contra a triste monotonia do tchador imposto às mulheres - nas aldeias junto à fronteira turca, provavelmente as mais miseráveis e abandonadas do país, parecem princesas em redor das ruínas dos seus castelos. Do lado turco, as coisas não melhoram. A miséria é quase igual, e a fortíssima presença militar, conjugada com as queixas permanentes dos curdos, dão uma triste ideia da sua situação social e política.

ERZURUM, PARA LÁ DA TURQUIA CONHECIDA

Erzurum é a porta de entrada na que é considerada a área mais tradicional e conservadora do país. A presença do Islão salta aos olhos, nas roupas excessivas das mulheres que é difícil surpreender sem lenço, e nos ocasionais tchadores pretos à moda do Irão. Aqui despojamo-nos da Turquia que conhecemos e entramos numa área de culturas multifacetadas: para Noroeste, são evidentes as influências da Geórgia e da Arménia; mais para Sul estende-se uma zona que já foi fértil e rica - a bacia dos rios Tigre e Eufrates -, funcionando ao longo da história como cruzamento e campo de batalha de civilizações, mas transformada hoje numa das mais pobres da Turquia.

Paláio de Isak Paxá, Dogubeyazit, Curdistão, Turquia/
Paláio de Isak Paxá, Dogubeyazit, Curdistão, Turquia

A paisagem, amarela e ondulante, imagina-se facilmente pintada de branco, como no filme de Yilmaz Guney, “Yol”. As casas são baixas e têm pátios de terra, onde grasnam enormes gansos e ladram cães felpudos. De vez em quando passa uma manada de vacas conduzida por um vaqueiro e aves de rapina mantêm-se de atalaia, penduradas nos fios eléctricos. A electricidade parece já ter chegado a todo o lado, mas as patelas de bosta seca ainda se empilham nos muros e ao lado das casas, para servirem de combustível no Inverno.
O nosso percurso levou-nos a Kars, Dogubeyazit, no sopé do monte Ararat, contornando depois o lago Van até Tatvan e Adilcevaz. Seguimos para Sul até Diyarbakir e Harran, já às portas da Síria. A paisagem não muda muito, limita-se a desenrolar um tapete de planícies polvilhada de aldeias pobres de pedra vulcânica ou de tijolos e terra amassada, contornando montanhas precocemente nevadas, no meio das quais surge o belo lago de Van.
Quer queiramos quer não, vai-se formando a imagem de um país diferente, cheio de gente tisnada pelo ar das montanhas, elas de roupas multicolores, saias compridas e aspecto cigano até nos lenços, eles de bigode farto e cabeleira escura. Uma boleia bem-humorada, entre o palácio de Isac Pasha e Dogubeyazit, mencionou o nome proibido pela primeira vez. Baixando o volume da música estridente, olhou pelo retrovisor e anunciou: “Música curda. Aqui é o Curdistão, não é a Turquia.”

CURDISTÃO, PAÍS SECRETO

Só os curdos parecem conhecer este país secreto, que não vem assinalado nos mapas. Alguns gostam de dizer que a sua pátria era a Mesopotâmia, a “terra entre os rios”, como lhe chamaram os gregos. Abraçada pelos rios Tigre e Eufrates, esta zona fértil prolonga-se pelo Iraque e abrigou um bom punhado de civilizações e povos, entre as quais os curdos. Aqui foi inventada a roda e a escrita cuneiforme, que precedeu os alfabetos actuais. Já 7.500 anos antes de Cristo a Mesopotâmia era habitada pelos sumérios, que construíram as primeiras cidades-estado do mundo, como Uruk e, mais tarde, Babilónia. Assírios, em 700 A.C., e persas sassânidas, em 539 A.C., tornaram-se os novos senhores da região. Seguiram-se invasões e misturas de colonos vindas de Oriente e Ocidente: os gregos e macedónios de Alexandre o Grande, tribos beduínas e árabes, tribos hebraicas e aramaicas, caucasianos, otomanos...

Igreja arménia na ilha de Akdamar, lago Van, Curdistão
Igreja arménia na ilha de Akdamar, lago Van, Curdistão

Sabe-se que no século XI, as tribos da montanha (arménios e curdos) estão bem instaladas a Norte da Mesopotâmia, na zona do lago Van. Mas a origem da sua chegada não é certa. Pensa-se que os curdos são descendentes de vários grupos étnicos, provavelmente originários dos montes Zagros (Irão) ou dos montes Hakkari (Turquia). Sabe-se que foram sempre nómadas e pastores de ovinos e cavalos - os turcos chamaram-lhes por muito tempo “turcos das montanhas”, não os distinguindo como uma etnia diferente. Nunca tiveram um estado independente, sempre divididos em tribos, cada uma com o seu chefe. Falam uma língua indo-europeia relacionada com o persa, em vários dialectos compreensíveis entre si. Marco Pólo descreve-os, no século XIII, como “tribos sem princípios, cuja ocupação consiste em assaltar e roubar os mercadores”; três séculos mais tarde, António Tenreiro, um cavaleiro português da Ordem de Cristo viajando por terra entre a Índia e Portugal, menciona os “curdis, os quais são umas gentes brancas. Vivem por criações de gados, são pouco domésticas e não costumam habitar senão em terras despovoadas de montanhas e serras, porque não querem ser senhoreados por ninguém”.
Dando azo à sua tradição marcial, algumas tribos curdas lutaram pelos sultões otomanos na Pérsia, na Rússia e, mais tarde, contra arménios e gregos. Mas o mais próximo que conseguiram estar da formação de um estado independente foi o famigerado Tratado de Sèvres, no qual os Aliados, mais para humilhação do governo otomano do que com real intenção de salvaguardar direitos políticos ou humanos, obrigavam os turcos à formação de um estado arménio e outro curdo. Apesar de apontados como excelentes soldados, a recompensa que os curdos tiveram, após a vitória turca de 1922 e a subida ao poder de Kemal Ataturk, foi a recusa em obterem quaisquer direitos ou privilégios especiais.

Castelo de Hosap
Castelo de Hosap

Começaram então as rebeliões, que foram subindo de tom até à formação do PKK, (Partia Karakaris Kurdistan), o Partido dos Trabalhadores Curdos de orientação marxista-leninista, que exigia nada menos que a independência. Depois do golpe militar de 1980, o PKK iniciou uma série de ligações perigosas que iria levar ao endurecimento da oposição turca: campos de treino de actividades terroristas no Líbano e na Síria, ligações à OLP de Arafat. O exército turco instalou a lei marcial nas áreas curdas e fez incursões em território sírio. Começou uma guerra suja em que cada uma das partes rivalizava com a outra em requintes de malvadez: ataques a civis, bombardeamento e evacuação forçada de aldeias, criação de milícias armadas favoráveis a Ankara, ataques a escolas e professores, acusados de promoverem a cultura turca, coação de jovens para se juntarem a um lado ou a outro, gente obrigada a tomar partido para acabar assassinada pela facção oposta. A vida em certas zonas tornou-se insustentável e o número de refugiados dentro e fora do país disparou; só na zona de Diyarbakir, considerada a capital do Curdistão turco, os mortos da guerra entre o exército e o PKK de Ocalan ficou em trinta a quarenta mil mortos e muitos dos seus habitantes são refugiados de aldeias destruídas ou esvaziadas pelo exército.

INCOMPREENSÕES

Os turcos não os compreendem. Dois jovens de Istambul que ousavam acampar nas margens do lago Van confessaram-nos com um ar espantado: “São iguais a nós. E são tão simpáticos!” Intoxicados por uma imprensa escrava da política governamental, os turcos imaginam os curdos como gentinha inculta, retrógrada, dada a violências e que os odeia profundamente. E só a última parte é que é verdade.

Família de Diyarbakir, Curdistão
Família de Diyarbakir, Curdistão

Amigos de Trabzon tinham-nos falado das famílias enormes, a religião levada muito a sério, “não seria pior usares um lenço na cabeça”. O fantasma do fundamentalismo e do terrorismo, o peso da pobreza que os arrasta para o fundo, afastando-os da tão ansiada meta da Comunidade Europeia. Em Dogubeyazit e Diyarbakir alimentam-se os ódios com histórias de assassinatos cometidos pela polícia e pelo exército. Face à repressão, os curdos definem-se pelo antagonismo com a Turquia. O que é um curdo? É um não-turco, de língua curda e nacionalidade turca, que odeia turcos.
A prisão de Ocalan em 1999, a que se seguiu o seu apelo ao fim da luta armada, inicia uma nova era. O PKK anunciou a sua dissolução e transformou-se no Kadek, o Congresso para a Liberdade e Democracia no Curdistão, que pede a autonomia cultural em vez da independência. O povo curdo vai ter de se redefinir para viver com o inimigo. O verdadeiro curdo vai ter de deixar de ser o que odeia os turcos, mas aquele que sabe, de facto, quem é. Em breve não vai bastar ouvir música curda às escondidas - agora até já nem é preciso -, ou dizer “Kurdistan” baixinho, enquanto fazem sinal de silêncio com o dedo, passando-o depois rapidamente pelo pescoço, numa explicação óbvia. Estes pequenos sinais de união curda, prontamente desfeita à primeira trica, vai desmoronar-se com a proporção e a velocidade com que a Turquia desistir da pesada repressão que tem usado nas últimas décadas. A música e a língua já não são proibidas; o Parlamento aprovou este ano uma lei que permite o seu uso e aprendizagem na televisão e - viva o luxo - nas escolas. O que vão os curdos fazer com tanta liberdade?

CURDOS CONTRA CURDOS

Os velhos trejeitos tribais ainda não desapareceram. Quando não estão a bater nos turcos, os curdos batem uns nos outros. Dogubeyazit, à sombra do monte Ararat e das dezenas de tanques e armamento pesado do exército, é um perfeito exemplo do tribalismo existente. Há três grandes famílias na cidade, cujos laços de parentesco, sejam primos por parte do avô ou casados com o cunhado do tio, implicam protecção mútua nas adversidades. Nem que seja preciso matar. Contaram-nos diversos episódios em que se demonstrava que a força de uma família consiste nesta união, e no número de homens que pode disponibilizar em caso de “guerra”.

Loja em Kars, Turquia
Loja em Kars, Turquia

Um exemplo prosaico foi o de um rapaz que angariava turistas para um hotel no terminal de autocarros, quando foi abordado por um taxista de outra família que o mandou ir-se embora, já que aquele lugar lhe pertencia e estava a tentar levar turistas para outro hotel. À troca de ameaças seguiu-se a retirada estratégica do rapaz para chamar alguns do seu clã, que vieram dar uma valente sova no taxista e continuar o seu “serviço turístico”. A coisa só não continuou com represálias porque um tio mais velho e respeitável convenceu os jovens a encontrarem-se, pedir desculpas e beijarem-se na sua presença, com a promessa de deixar o assunto ficar por ali. Mas nem sempre as coisas acabam tão bem. Há quem recuse os beijos e jure que só pára quando matar.
Soubemos de um desses casos da última vez que visitámos a cidade. Um homem matou outro e desapareceu. A família do falecido fez saber que não aceitava os mil dólares que é costume pagar por “dívidas de sangue”, e jurou vingança. Quando deixámos Dogubeyazit, um sobrinho da vítima, militar, tinha vindo do quartel para procurar o assassino a monte, e um cunhado preparava-se para mandar os filhos adolescentes “de férias” para Istambul, evitando que se juntassem aos que preparam o próximo crime...
O nosso amigo Mehmet lamenta esta mentalidade. “Curdos contra curdos. Nunca nos conseguimos unir.” - diz com tristeza. “Conheço muitos que fogem destes problemas e vão para a Holanda e a Alemanha a gritar aos quatro ventos que são refugiados políticos, em vez de ficarem aqui para mudar isto. Perguntem-lhes onde estão as mulheres da família, que ficam viúvas e sem nada, e não podem fugir a estas situações!” Se forem curdas tradicionais estão em casa a cuidar da dezena de filhos que lhes coube na sorte. Alguém nos disse que cinco, oito filhos, são números perfeitamente normais. Mas tinha um tio com vinte e um. Só que tinha três mulheres. “Nas aldeias, ainda há alguns assim...”

AS BELEZAS DO CURDISTÃO TURCO

Entalado entre as montanhas de Erzurum, Erzincan e Diyarbakir, o Curdistão turco é um belo país. A paisagem é demasiado dura e agreste para não marcar quem lá mora. Imaginemos uma espécie de Trás-os-Montes cheia de pastores-guerreiros de bigode farfalhudo. E muita, muita neve. Cá em baixo cultiva-se cereais e usa-se o pasto, embora o nomadismo já seja raro. Terra seca, poucas árvores (amendoeiras, pistaceiras, choupos...), algum algodão, muitos rios, horizontes imensos. E tanques, guaritas, soldados, controlos militares por todo o lado.

Mesquita em Ani, Curdistão
Mesquita em Ani, Curdistão

 

 
Entre Dogubeyazit e a cidade de Van, nas margens do lago, passámos cinco controlos militares e um da polícia. Revista dos passageiros, exibição de documentos de identidade, às vezes esvaziamento completo do autocarro, busca nas bagagens e passagem pelo detector de metais. O que vale é que os turcos são sempre agradáveis com os estrangeiros, mesmo quando estão de uniforme.
 
A cada paragem desfilam imagens cada vez mais asiáticas: homens de boné agacham-se ao sol, puxando fumaças de cigarro e sorvendo chá à maneira tradicional, com um cubo de açúcar entalado nos dentes da frente; miúdos de cabeça rapada tentam engraxar o calçado dos passantes por uma ninharia. As aldeias de terra batida têm sempre as mesmas casinhas baixas intercaladas por medas de feno, os montes de bosta seca cobertos, à espera do Inverno, rebanhos e manadas de vacas, galinhas e patos à solta.
 
As cidades elegantes da Anatólia Ocidental ficaram muito para trás, e Istambul ou Ancara dificilmente parecem pertencer ao mesmo país. Mas as coisas estão a começar a mudar. Depois de uma melhoria substancial na rede de estradas e transportes da zona, a economia de subsistência vai ser alterada pelo Projecto para a Anatólia Oriental (Guneydogu Anadolu Projesi), conhecido por GAP: nada menos que vinte e duas barragens e dezanove centrais eléctricas para aproveitar a água dos rios Tigre e Eufrates, que vão permitir cultivar dois milhões de hectares de terras áridas, ao mesmo tempo que incentivam a industrialização através do baixo preço da energia na área do projecto. Mais empregos, mais terra disponível, mais turismo.
 
O lado negro da questão é que não é só a vida das pessoas a mudar. O projecto é de tal maneira megalómano que, além de enterrar dezenas de aldeias, destrói totalmente alguns ecossistemas locais, arrasando flora e fauna à passagem. Mas nada conseguiu modificar os planos do governo central e a primeira grande barragem, a Ataturk, já tem dez anos e uma grande mancha verde à sua volta.
 
Também a história tem pago o seu quinhão às grandes barragens; alguns sítios foram submersos, outros salvos in extremis por equipas de arqueólogos. Por aqui, é certo que as povoações não são particularmente inspiradoras, mas guardam valiosas marcas da passagem de civilizações antigas. Em Van, por exemplo, embora o belo lago de águas azuis já esteja afastado um quilómetro do local onde os urartianos tinham o seu porto no século IX A.C., as muralhas da velha fortaleza, a “Rocha de Van”, continuam imponentes no topo do rochedo. Em baixo ficam as ruínas da cidade original, destruída nos anos 50 por um terramoto: algumas mesquitas escurecidas e um terreno arenoso e acidentado, onde os locais passeiam e fazem piqueniques.

Ruínas e mesquita em Dogubeyazit, Turquia
Ruínas e mesquita em Dogubeyazit, Turquia

Já lá vai o tempo em que era arriscado para os turistas vir até aqui. Agora recupera-se o tempo perdido com uma afabilidade extrema, que compensa a ocasional falta de língua de comunicação. Quando não há trocos entramos sem pagar na fortaleza, ou pagamos o jantar no restaurante “da próxima vez”. O pior são os chás gratuitos que temos de engolir; se o café turco é amargo, o chá ainda consegue ser mais. Mas os vendedores de tapetes esquecem-se de nos vender tapetes, e passamos horas a falar do país, da Europa, da dificuldade em arranjar artesanato curdo. E do Curdistão, onde fazem questão de nos anunciar que estamos. Seguem-se histórias de cadáveres encontrados em lixeiras, incursões nocturnas do exército, feridos impedidos de ir ao hospital, que acabam por morrer diante da família. Feridas que nunca mais saram.

O BÍBLICO MONTE ARARAT, TURQUIA

A Norte e a Sul de Van, a paisagem tem referências bíblicas. Agri Dag, o monte Ararat, ergue-se de uma paisagem suja de areias e cinzas vulcânicas, num cone perfeito. Desapareceram os glaciares referidos por Marco Pólo, que impediam a subida ao cume, e também o perigo de fogo cruzado entre o exército e o PKK.
Nos hotéis há agora quem ofereça passeios a cavalo pelo monte e viagens ao lugar onde encalhou a Arca de Noé, marcada por saliências pedregosas com a forma de um grande barco. António Tenreiro não a conseguiu avistar por causa da neve, mas foi-lhe dito que os cristãos locais subiam ao monte e “traziam paus da dita arca e sinais dela”. As próprias aldeias no sopé parecem viver ainda tempos bíblicos, rodeadas por vacas e ovelhas junto a lameiros quase secos, casinhas básicas com mobiliário nómada: tapetes e alguns almofadões tecidos pelas mulheres. O luxo é o frigorífico de onde sai uma água fresquíssima vinda de não sei que fonte, e as prateleiras metidas na parede, onde guardam os copos do chá e alguns pratos. A dona da casa faz as honras, interrompendo a cozedura matinal do pão para servir o chá, acompanhada do filho mais velho.
Noutra aldeia somos convidados a participar numa festa de casamento, onde dois músicos animam os dançarinos com música curda tocada com sintetizadores e guitarras eléctricas. A tradição quer que toda a aldeia coma e beba na boda, e os passantes consideram-se convidados. As danças também são tradicionais, com filas de raparigas de mãos dadas - às vezes admite-se um ou outro rapaz - a mexerem ombros e pernas num can-can modesto e muito contagiante. A música ondula e rodopia como a paisagem ressequida, com um ritmo que faz agitar os lencinhos coloridos nas mãos dos dançarinos. Até parece fácil...

Vista do monte Ararat, perto de Dogubeyazit, Turquia
Vista do monte Ararat, perto de Dogubeyazit, Turquia

 

HARRAN E DIYARBAKIR, DUAS DAS CIDADES MAIS ANTIGAS DO MUNDO

A sul, junto à Síria, a aldeia de maioria árabe de Harran é apontada como o lugar onde viveu Abraão, na sua viagem entre Ur e Canãa. Paupérrima, mal consegue tirar dividendos da sua importância histórica com a venda de postais, lenços curdos feitos na China e enfeites de caniços e fios coloridos. Para além das suas típicas casas cónicas construídas de lama seca, únicas da região e agora quase exclusivamente utilizadas como armazéns ou abrigos para o gado, Harran é um dos locais do mundo há mais tempo habitado de forma permanente; pelo menos, seis mil anos. Assírios, romanos, bizantinos, e mongóis passaram por aqui e deixaram templos de adoração aos astros, mesquitas, uma universidade e mesmo uma fortaleza dos Cruzados. Tudo em ruínas, mas agora em pleno estudo e recuperação.
Também Diyarbakir, para Norte, é apontada como uma das mais antigas cidades do mundo e, tal como em Harran, na mesma área é possível encontrar vestígios de civilizações e séculos completamente diferentes. Na “capital curda”, escondidos pelo tráfego e engolidos pela cidade moderna, os mais evidentes acabam por ser as setenta e duas torres que pontuam os seis quilómetros de negras muralhas bizantinas, erguidas sobre as romanas, que provavelmente tinham substituído as persas, as assírias e as urartianas. Percorrendo o labirinto de ruelas e o bazar, encontramos mesquitas e uma ou outra kilisesi (igreja). Nada de mais, uma vez que as tribos arménias, assinaladas na área desde o século VI A.C., formaram a primeira nação cristã do mundo.
No século XVI, António Tenreiro chama a esta zona povoada de arménios e curdos a “Arménia baixa”. A paz parecia reinar, e são muitas as áreas de arménios cristãos descritos como “sujeitos a um senhor Curdi que muito favorece e deixa viver em sua liberdade publicamente e assim ter suas igrejas e usarem seu costume e lei”. Em Hosap, está aberto aos visitantes um belíssimo exemplo de uma fortaleza curda do século XVII, imponente e inserida numa paisagem desértica e montanhosa, de onde ainda sobressaem as muralhas que rodeavam a antiga cidade, como o dorso ondulante de um dragão.

Loja nas ruelas de Diyarbakir, Curdistão, Turquia
Loja nas ruelas de Diyarbakir, Curdistão, Turquia

Estas “gentes que são mouros que chama Curdis e se avêm muito bem com os cristãos arménios”, muitas vezes não “dão obediência ao Grão-Turco senão voluntariamente”. Os desejos de independência dos arménios vieram introduzir um elemento desestabilizador neste relacionamento cordial, e a história acabou com os arménios a passarem para o lado dos russos durante a Iª Grande Guerra, e a alternarem massacres com os turcos e os curdos, desta vez unidos e de acordo. Como os turcos venceram, hoje é quase impossível encontrar um arménio no Curdistão, chacinados e deportados na sua totalidade. Sobraram as suas igrejas, e algumas delas, por si só, justificam bem uma deslocação ao Leste da Turquia. As de Ani e Akdamar são das mais bonitas e bem preservadas.
Em Ani, mesmo em cima da fronteira com a Arménia, é proibido fotografar porque, disseram-nos, os soldados arménios disparam mal vêem o brilho das máquinas; mas parece que basta arranjar um intermediário para pagar aos soldados turcos, do lado de cá da fronteira, e os arménios deixam logo de disparar...

 

NAS MARGENS DO LAGO VAN

O caso de Akdamar é mais simples. Contorna-se a margem sul do lago Van, que ora é espelho ora mar, ondulado pelo vento e preso pela terra. Tem cerca de quatro mil quilómetros quadrados, é extremamente alcalino e está rodeado por montanhas, cobertas de neve durante quase metade do ano. A lava do vulcão Nemrut, agora uma belíssima cratera com lagos de água quente e fria, foi responsável pela barragem natural que o cercou e aprofundou.

Vista do lago Van, Turquia
Vista do lago Van, Turquia

Infelizmente, a poluição está a matá-lo devagar e, apesar da tentadora água azul, os banhos são desaconselháveis. Tenreiro fala de “um lago de água amargosa” e “duas ilhas pequenas, habitadas de frades religiosos arménios, onde têm certos mosteiros, e têm bons pomares de fruto”: Çarpanak e Akdamar. A última avista-se da margem, a poucos quilómetros do belo cemitério otomano de Gevas. Construída no século X, no que era então um pequeno reino arménio, a igreja de fachadas esculpidas com personagens da Bíblia está sozinha entre amendoeiras, velhas pedras tumulares e tartarugas sem pressa, que se passeiam por ali. Magnificamente trabalhada, tem ares de catedral mas é pequena como uma capela. Dos frescos interiores já pouco sobra, mas o lugar é idílico, e alcança-se numa viagem de barco que dura vinte minutos (o tempo de dois chás), sulcando devagar as águas azuis do Van.
Mais adiante fica a povoação mais importante das suas margens, a seguir a Van: Tatvan. Nas proximidades fica o vulcão Nemrut e o fabuloso cemitério de Ahlat, o maior do mundo islâmico, com uma colecção de túmulos em forma de tendas nómadas, e antiquíssimas pedras tumulares, algumas do século XII. Nas aldeias, parece que as pessoas estiveram a vida inteira à nossa espera. Enrolam-nos cigarros com tabaco de Bitlis, oferecem-nos ayran (iogurte salgado com água) caseiro, passamos revista às fotos das famílias - algumas de crianças em pose, com a kalashnikov do pai -, ajudamos nos trabalhos domésticos, tentam ensinar-nos as danças tradicionais. Mostram-nos e oferecem o que têm de seu, sussurrando à socapa a palavra Curdistão, na esperança de que o país nasça porque se fala dele.

O PALÁCIO DE ISAC PAXÁ, EM DOGUBEYAZIT

O palácio de Isac Paxá, em Dogubeyazit, parece sintetizar este país que nunca existiu. É ao mesmo tempo otomano, persa e arménio; em suma, curdo, já que os povos nómadas sempre souberam reunir influências com mestria. Foi mandado construir no século XVIII por um chefe curdo, arménio ou georgiano, não se sabe bem, e concluído pelo seu filho, que contratou um arquitecto arménio. As suas portas, folheadas a ouro, foram levadas pelos russos para o museu Hermitage. Mesmo ao lado, compartilhando a solidão dos rochedos, está uma fortaleza urartiana, mais tarde otomana. Aos seus pés estende-se uma paisagem desértica, de onde se destacam as ruínas da antiga Beyazit, despovoada à força pelo exército turco.
O gracioso palácio, empoleirado numa falésia, parece ao mesmo tempo independente e orgulhoso. Solitário, foi atacado, ocupado, quase destruído, mas resistiu sempre. Nunca chegou a desaparecer e mantém-se, irreal, como um castelo das Mil e Uma Noites ou o cenário de um filme oriental.
 
 

A mesquita Kocatepe, em Ancara, uma das maiores do mundo
A mesquita Kocatepe, em Ancara, uma das maiores do mundo

Pedras tumulares em Ahlat, o maior cemitério muçulmano do mundo
Pedras tumulares em Ahlat, o maior cemitério muçulmano do mundo

Vista do castelo de Urfa, Curdistão, Turquia
Vista do castelo de Urfa, Curdistão, Turquia

Ruínas em Ani, Curdistão
Ruínas em Ani, Curdistão

Fonte: www.almadeviajante.com