Dinheiro e cultura da Turquia estão em ascensão no Iraque

17-01-2011 11:43

 Uma Turquia tão importante quanto seus tempos de glória do Império Otomano está projetando influência num Iraque turbulento, de cidades prósperas do norte aos campos de petróleo perto de Basra, ao sul, numa demonstração de poder que ilustra seu crescente peso em todo o mundo árabe, antes desconfiado em relação ao país.

Sua ascensão aqui, numa arena disputada pelos Estados Unidos e pelo Irã, prova seu maior sucesso até o momento, à medida que a Turquia emerge da sombra de sua aliança com o Ocidente para traçar uma política externa muitas vezes assertiva e independente.

A influência da Turquia é maior no norte do Iraque, e mais ampla, embora não mais profunda, do que a influência do Irã no restante do país. Embora os Estados Unidos tenham invadido e ocupado o Iraque, perdendo mais de 4.400 soldados, a Turquia agora exerce o que pode acabar sendo um legado mais duradouro - o chamado poder suave ('soft power'), a influência através da cultura, educação e negócios.

 

"Esse é o truque _ somos muito bem-vindos aqui", disse Ali Riza Ozcoskun, que chefia o consulado da Turquia em Basra, um dos quatro postos diplomáticos turcos no Iraque.

A nova influência da Turquia sobre o Iraque ocorre sobre um eixo que vai de Zakho, no norte, a Basra, passando pela capital, Bagdá. Para um país que já considerou a região curda no norte do Iraque como uma ameaça existencial, a Turquia embarcou no início do que pode ser chamado de uma bela amizade.

Na capital iraquiana, onde a política não é para os fracos, o país promoveu uma coalizão secular que ajudou a construir, atraindo a ira do primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki. A Turquia se posicionou como a porta de entrada para a Europa dos abundantes recursos de petróleo e gás do Iraque, ao mesmo tempo em que atende a suas próprias demandas energéticas crescentes.

À medida que o Partido da Justiça e Desenvolvimento do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan reorienta a política na Turquia, também o faz no Iraque, com repercussões para o restante da região.

Embora algumas autoridades turcas rechacem a ideia de neo-otomanismo _ uma orientação da Turquia se distanciando da Europa e em direção a um império que já chegou a incluir partes de três continentes _, o processo de globalização do país e a atenção dos mercados para o Oriente Médio está perturbando a noção de que apenas o poder americano é decisivo. A Turquia se comprometeu com a integração econômica, vendo seu futuro em pelo menos um eco do seu passado.

"Ninguém está tentando tomar o Iraque ou uma parte do Iraque", disse Aydin Selcen, chefe do consulado em Erbil, aberto este ano. "Mas vamos nos integrar a este país. Estradas, ferrovias, aeroportos, gasodutos e oleodutos _ haverá um fluxo livre de pessoas e bens entre os dois lados da fronteira."

Por fronteira, ele quer dizer Zakho e os 26 postos de controle de Ibrahim Khalil, por onde passam diariamente 1.500 caminhões, trazendo materiais de construção, roupas, móveis, alimentos e quase tudo da Turquia que possa abastecer lojas no norte do Iraque.

O crescimento econômico que eles ajudaram a alavancar ecoou por todo o Iraque. O comércio entre os dois países correspondeu a cerca de US$ 6 bilhões em 2010, quase o dobro em relação a 2008, segundo autoridades turcas. Eles projetam que, em dois ou três anos, o Iraque poderá ser o maior mercado para as exportações da Turquia.

"É apenas o começo", disse Rushdi Said, o extravagante presidente iraquiano curdo da Adel United, uma empresa envolvida em várias atividades, de mineração a projetos de habitação. "Todo o mundo começou a brigar pelo Iraque. Eles estão brigando pelo dinheiro."

Ambição, em quatro idiomas
O terno de Said, pontuado por um lenço preto e branco no bolso, brilha tanto quanto o otimismo do homem, do tipo "fique rico rápido". De certa forma, ele é a reencarnação do mercador otomano, confortável em se expressar em curdo, turco, persa e árabe. Em qualquer uma dessas línguas, ele se gaba de seus planos.

Said pensou em contactar Angelina Jolie, "talvez Arnold e Sylvester também", para oferecer interesse em alguns de seus 11 projetos por todo o Iraque. São projetos de construção de 100 mil vilas e apartamentos ao custo de alguns bilhões de dólares. No entanto, até o momento seu melhor parceiro tem sido Ibrahim Tatlises, um cantor curdo nascido na Turquia, cuja imagem enfeita a propaganda de Said para seu projeto.

"As vilas estão prontas!", diz Tatlises em comerciais de TV. "Venham! Venham! Venham!"

Erbil, a capital curda no norte, onde vive Said, se tornou o vínculo da política e dos negócios turcos, tornados possíveis pelo afiado poder militar.

Cerca de 15 mil turcos trabalham em Erbil e outras partes do norte. Empresas turcas, mais de 700, representam mais de dois terços das empresas estrangeiras na região. As exigências de viagens foram revogadas, e o consulado em Erbil emite cerca de 300 vistos por dia. Um movimento religioso turco opera 19 escolas na região, educando 5.500 alunos: árabes, turcos e curdos se misturando usando o inglês.

Passando por cima das reservas dos militares turcos, que realizaram vários golpes contra governos eleitos, Erdogan tomou medidas hesitantes para se reconciliar com os próprios curdos da Turquia, no que o governo chama de "abertura curda". Eles se depararam com algum sucesso, mas o novo clima reflete as mudanças: diplomatas turcos daqui se referem casualmente ao Curdistão iraquiano (sendo que o termo há muito tempo era um tabu). Massoud Barzani, presidente da região, não fala mais sobre o Grande Curdistão.

 

Equilibrismo diplomático
Mais reservadamente, autoridades americanas começaram, no final de 2007, a apoiar ações militares turcas contra rebeldes curdos na Turquia que buscaram refúgio no norte do Iraque. A Turquia ainda mantém 1.500 soldados aqui, dizem as autoridades, e a cooperação permitiu que eles, como colocou um oficial americano, "combatessem com sucesso" os rebeldes turcos.

Autoridades iraquianas em Erbil e Bagdá protestaram, exigindo uma medida da diplomacia americana para aliviar seu ressentimento. Mas, pelo menos por ora, autoridades curdas veem sua aliança com a Turquia como a maior prioridade numa região ainda disputada pelo Irã.

A influência política da Turquia em Bagdá não é menos disseminada. Ao contrário do Irã e dos Estados Unidos, o lugar tem cultivado laços com praticamente todos os blocos do país, embora as relações com al-Maliki tenham se mostrado muitas vezes difíceis. Em certo momento, seus oficiais tentaram revogar as credenciais do embaixador turco para entrar na Zona Verde. "Um mal-entendido", como explicaram diplomatas turcos.
Diplomatas da Turquia ficam por dois anos, ao contrário da designação dos americanos, que em geral dura um ano. Nesse período, eles têm conseguido estabelecer parceiros improváveis, especialmente os seguidores do populista clérigo xiita Muqtada al-Sadr.

A maior parte do bloco de legisladores de al-Sadr viajou para a capital da Turquia, Ancara, para treinamento sobre o protocolo parlamentar. Em outubro, os turcos eram os únicos diplomatas a participar de uma comemoração organizada pelos sadristas na Universidade de Bagdá.

"Não é um grupo a ser excluído", disse um deles.

Mas cortejar os sadristas é algo secundário em relação ao grande prêmio desejado nos longos meses de negociações envolvendo um novo governo. A Turquia respaldou fortemente uma coalizão liderada por Ayad Allawi, um político xiita secular que conta com o apoio dos sunitas do país. Mais que qualquer outro país, incluindo os bairros árabes do Iraque, acredita-se que a Turquia tenha forjado a coalizão desde o início.
Os interesses turcos e americanos nem sempre se alinharam na formação do governo, e alguns diplomatas questionaram se autoridades americanas eram percebidas como oferecendo um apoio forte demais a al-Maliki.

"Um show de acrobacia política", disse uma autoridade americana, descrevendo as relações Turquia-Estados Unidos em geral.

Mesmo assim, esses interesses não estão alinhados agora, e o grau de poder da coalizão de Allawi acaba desempenhando no governo ilustrará vivamente o peso relativo da Turquia sobre o Iraque.

"Eu diria que os turcos concentraram muitos esforços nisso", disse a autoridade americana, "e eles ainda o fazem".

Estabelecendo conexões
No extremo sul do Iraque, o antigo bairro otomano em Basra está decadente. Suas janelas são remendadas com cimento, embora o fedor do esgoto ainda possa ser sentido. Do outro lado da cidade está o Basra International Fair Ground, construído pelos turcos e aberto em junho. Três feiras já foram realizadas aqui, incluindo uma que foi organizada em novembro para a indústria de petróleo do Iraque.

O petróleo ainda reina no Iraque e, assim como todo o resto, está por trás do interesse da Turquia aqui. O duto que vai da iraquiana Kirkuk a Ceyhan, na Turquia, já carrega cerca de 25 por cento das exportações de petróleo do Iraque.
Os turcos entraram num ambicioso projeto do gasoduto Nabucco, orçado em US$ 11 bilhões, que pode desviar da Rússia e levar gás iraquiano à Europa. Empresas turcas possuem interesses nos contratos de petróleo e projetos de gás, com valor potencial de bilhões de dólares. Numa terra cheia de petróleo, nenhum lugar tem mais do recurso do que Basra.

Embarcações turcas offshore fornecem 250 megawatts de eletricidade por dia. Empresas turcas remodelaram o Sheraton Hotel em Basra e estão ajudando a construir um estádio para 65 mil pessoas. A companhia aérea nacional turca está planejando lançar quatro voos por semana de Istambul a Basra; apenas um é oferecido hoje, pela Iraqi Airways. Vortex, Crazy Dance e outras atrações em Basraland são turcas. Assim como os doces vendidos ali.

"Ninguém está trabalhando aqui, com exceção dos turcos", disse Ozcoskun, o cônsul turco em Basra.

Foi um exagero por parte do diplomata tagarela, mas nem tanto.

"Basra é virgem", ele disse, uma frase usada por diplomadas turcos também para se referir ao restante do Iraque. "Quem chega primeiro, quem se estabelece primeiro, quem faz os contratos primeiro terá mais lucro no futuro. Não sinto nenhuma concorrência agora. Nenhuma mesmo."

Fonte: globo.com